Desentortando Doralice
Dora saltou um ponto depois. O motorista passou, e ela estava cansada até para reclamar; pulando meio fio adentro, deu de cara com a loira.
Grande loira.
Belos seios.
Lábios, um botão cor de rosa.
Entreabertos.
A lingerie cor de champanhe ornava um corpo de golpes precisos na vista.
Era a modelo na fotografia, brilhando na vitrine, em tamanho três vezes maior que o natural.
Andou para casa um quarteirão a mais que o habitual, pensando em nada. Esse aparente vazio nunca a assustou – atravessar a rua, virar a esquina, enfiar a chave na fechadura, girar, tirar os sapatos – era um processo tão natural, como um rito que se repete por milênios e milênios num pequeno povoado. Era o silêncio das coisas repetidas, matéria de vida e de morte que modelam os dias, longos dias.
Olhando para o alto, viu a luz acesa do seu apartamento e se repreendeu por te-la esquecido ligada. Subiu as escadas de concreto liso, e girando a maçaneta percebeu: nunca havia visto aqueles dedos. Curiosa, jogou a bolsa no sofá florido e foi até o quarto, abriu a porta do armário se olhando no espelho embaçado. O uniforme azul marinho, o coque. Um nariz longo e fino se evidenciou. Dois olhos pequenos, como de um rato, brilhavam, negros. Um emaranhado castanho, caía por sobre os ombros depois do penteado desfeito.
Foi se livrando pouco a pouco do terninho, da saia, das meias de média compressão, dos brincos discretos. Estava nua, um umbigo saliente se destacava num corpo esboçado. As linhas, tão tênues pareciam dizer que estava ali um mulher que mal acabara de surgir. Sem sombra, traço ou perspectiva definidas.
As buzinas, freadas, gritos dos passantes apressados que entravam diariamente pela janela foram diminuindo de volume, como na última faixa de um disco. Estava completamente sozinha, pela primeira vez: no apartamento, de frente para o espelho, e nem sabia coisa alguma sobre aquela do reflexo. Encostou de leve nos seios do espelho, mas nada sentiu. Pensou nos homens que desejaram aquele corpo, e que iriam ainda desejá-lo. Eles saberiam de algo que para ela ainda estava escondido?
Fechou a porta e tateou o escuro até encontrar uma caixa de sapatos amarela, despencada, embaixo da cama. Dentro, bilhetes, fotografias, convites de shows, tíquetes de passagem. Analisou cada objeto, e agarrada consigo mesma foi até a cozinha, espalhando tudo pelos ladrilhos, arrebentou uma garrafa de álcool em cima.
Na gavetinha do banheiro, achou um batom vermelho e se pintou com todo exagero que lhe foi negado desde a infância. De volta ao quarto enfiou um tubinho preto pelas pernas magras e arqueadas. A testa suava, suava. Um palito da caixa de fósforos na sua mão foi o suficiente.
Desceu as escadas do prédio, chamuscada no braço e no rosto pelo lado esquerdo.
Desceu no mais fundo e escuro de si, e era bom. Era frio.
Desceu e desceu. Era seu agora o lado canhoto da vida.
Por Renata Côrrea
Aquele all rights reserved .
Porque há mais flores neste jardim do que supõe a minha vã filosofia ...
Dora saltou um ponto depois. O motorista passou, e ela estava cansada até para reclamar; pulando meio fio adentro, deu de cara com a loira.
Grande loira.
Belos seios.
Lábios, um botão cor de rosa.
Entreabertos.
A lingerie cor de champanhe ornava um corpo de golpes precisos na vista.
Era a modelo na fotografia, brilhando na vitrine, em tamanho três vezes maior que o natural.
Andou para casa um quarteirão a mais que o habitual, pensando em nada. Esse aparente vazio nunca a assustou – atravessar a rua, virar a esquina, enfiar a chave na fechadura, girar, tirar os sapatos – era um processo tão natural, como um rito que se repete por milênios e milênios num pequeno povoado. Era o silêncio das coisas repetidas, matéria de vida e de morte que modelam os dias, longos dias.
Olhando para o alto, viu a luz acesa do seu apartamento e se repreendeu por te-la esquecido ligada. Subiu as escadas de concreto liso, e girando a maçaneta percebeu: nunca havia visto aqueles dedos. Curiosa, jogou a bolsa no sofá florido e foi até o quarto, abriu a porta do armário se olhando no espelho embaçado. O uniforme azul marinho, o coque. Um nariz longo e fino se evidenciou. Dois olhos pequenos, como de um rato, brilhavam, negros. Um emaranhado castanho, caía por sobre os ombros depois do penteado desfeito.
Foi se livrando pouco a pouco do terninho, da saia, das meias de média compressão, dos brincos discretos. Estava nua, um umbigo saliente se destacava num corpo esboçado. As linhas, tão tênues pareciam dizer que estava ali um mulher que mal acabara de surgir. Sem sombra, traço ou perspectiva definidas.
As buzinas, freadas, gritos dos passantes apressados que entravam diariamente pela janela foram diminuindo de volume, como na última faixa de um disco. Estava completamente sozinha, pela primeira vez: no apartamento, de frente para o espelho, e nem sabia coisa alguma sobre aquela do reflexo. Encostou de leve nos seios do espelho, mas nada sentiu. Pensou nos homens que desejaram aquele corpo, e que iriam ainda desejá-lo. Eles saberiam de algo que para ela ainda estava escondido?
Fechou a porta e tateou o escuro até encontrar uma caixa de sapatos amarela, despencada, embaixo da cama. Dentro, bilhetes, fotografias, convites de shows, tíquetes de passagem. Analisou cada objeto, e agarrada consigo mesma foi até a cozinha, espalhando tudo pelos ladrilhos, arrebentou uma garrafa de álcool em cima.
Na gavetinha do banheiro, achou um batom vermelho e se pintou com todo exagero que lhe foi negado desde a infância. De volta ao quarto enfiou um tubinho preto pelas pernas magras e arqueadas. A testa suava, suava. Um palito da caixa de fósforos na sua mão foi o suficiente.
Desceu as escadas do prédio, chamuscada no braço e no rosto pelo lado esquerdo.
Desceu no mais fundo e escuro de si, e era bom. Era frio.
Desceu e desceu. Era seu agora o lado canhoto da vida.
Por Renata Côrrea
Aquele all rights reserved .
Porque há mais flores neste jardim do que supõe a minha vã filosofia ...
